sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A Internet mudou para sempre a relação dos governados com os governantes

O jovem jornalista saudita Hamza Kashgari não devia ter sonhado que seus comentários postados no Twitter no aniversário do profeta Muhammad, no dia 4 de fevereiro, iam ter consequências tão estridentes e perigosas para ele. 

"Eu tenho amado coisas em você, e tenho odiado outras", escreveu Hamza, de 23 anos, no Twitter, numa conversa imaginária com o profeta Muhammad, que morreu mais de mil anos atrás. "Se eu te encontrasse, eu não ia beijá-lo, mas estenderia minha mão para você coo mo qualquer outro amigo, e ia sorrir para você. Mas eu não vou rezar para você." 

Como o fundador do Islã, mais de 1.400 anos atrás em Meca, Muham mad é venerado por todos os muçulmanos coo mo uma pessoa quase sagrada, que nunca pode ser criticada ou ter seus ensinamentos postos em duvida. Então, não é tão difícil de entender a fúria da reação que explodiu no Twitter e no Facebook. Mais de 30.000 twitadas sobre o assunto voaram pelo espaço sideral, a maioria atacando o jovem ex-colunista do diário "AI-Bilad", com muitos chamando-o de apóstata, o que pode levar a pena de morte na Arábia Saudita. Um grupo foi formado no Facebook, com mais de 8.000 membros, pedindo a morte dele. 

Atordoado pela reação feroz de crentes através do mundo islâmico, Hamza logo excluiu seus comentários e deletou sua conta no Twitter. Ele fugiu do país no dia 9 de fevereiro, mas poucos dias depois foi detido na Malásia quando tentava embarcar num vôo para a Nova Zelândia, onde ia pedir asilo político. O rei da Arábia Saudita, Abdullah ibn Abdul Aziz, havia mandado prendê-lo e o reino alegadamente tinha acionada a Interpol para deter o jovem onde ele estivesse no mundo. Logo depois, ele foi mandado de volta para o reino, onde continua preso e aguarda julgamento. 

Estudioso, Hamza cresceu numa família de muita fé, e memorizou o Alcorão Sagrado inteiro, uma realização nada fácil. Mas, com sua mente curiosa, ele começou a devorar livros e, segundo sua mãe, vivia trancado no quarto lendo livros e não falava muito com sua família. Dias depois de ele ser preso, ela telefonou para um programa religioso de TV local e desabafou, chorando ao vivo, contando como o seu filho era um bom menino, e que ele tinha se arrependido dos seus comentários. Mas isso não foi o suficiente para o sheik Nasser al-Omar, um líder religioso e acadêmico, que chorou numa palestra filmada e postada no YouTube, pelas palavras que Hamza tinha ousado dizer ao profeta Muhammad. "O arrependimento dele foi feito com palavras frias", disse sheik Nasser. "Ele está sendo insincero, ele deve ser executado. Nós não devemos nos engajar em debates com ateus. Mas, em vez, devíamos esquentar nossas espadas para lutar contra eles." 

Ele terminou por dizer que Hamza devia ser julgado por um tribunal de shariah, ou religioso, e sentenciado por apostasia mesmo após ele ter se arrependido. Mas não pensem que a Arábia Saudita inteira está na Idade Média. Milhares de sauditas chocados com a efusão de intolerância contra Hamza pediram calma, bom juízo e tolerância com um jovem que somente pecou por expor suas duvidas da sua fé na internet. Até a princesa Basmah bin Saud al-Saud, uma filha do falecido rei Saud, escreveu uma carta aberta para o rei Abdullah e o príncipe herdeiro Nayef, pedindo que dessem um perdão real ao jovem Hamza. 

É talvez irônico que, num país onde não há liberdade de expressão, esteja o maior número de usuários per capita do Twitter no Oriente Médio, e onde o bilionário príncipe Alwaleed ibn Talai recentemente comprou US$ 300 milhões em ações da Twitter, o que lhe deu 6% de participação na empresa. Mas esse é o outro lado do reino que poucos fora da região veem: uma população predominantemente jovem, educada, com 100.000 sauditas atualmente estudando nos EUA com bolsas do governo saudita, religiosos sim, mas a maioria moderados e querendo as coisas que todos os jovens querem. Empregos, governantes menos corruptos e uma voz no empreendimento do seu futuro. 

Interessante é ver como a internet está senda usada por jovens sauditas para se expressar e para responsabilizar líderes pelos seus atas. No Twitter há uma conta anônima que regularmente delata vários excessos de príncipes, como ganhar comissões gigantescas em contratos com o governo, ou ter palácios enormes. E ver que alguns dos príncipes têm respondido às denúncias, se defendendo, uma coisa que nunca ia acontecer na mídia tradicional que é fortemente controlada pelo governo. 

No YouTube, vários cineastas estreantes estão ganhando milhares de seguidores com seus seriados de 15 minutos cada, que eles postam lá regularmente, mexendo com os mais variados tópicos, desde a pobreza urbana até o amor entre jovens. 

Não acho que Hamza será executado. Ele está sendo usado como um bode expiatório pelos forças ultraconservadoras que não gostam da modernidade. Se o governo conseguir que ele seja julgado pelo Ministério da Informação, vai sair com uma multa. Se for julgado num tribunal de shariah, ele possivelmente pode ser condenado à morte. Mais aí o rei irá intervir e perdoar o rapaz. O que sei com certeza é que a internet, apesar de ser fortemente censurada pelo governo, mudou para sempre as relações entre o povo saudita e seus lideres, e é um canal de expressão e comunicação que o governo jamais poderá fechar. 

RASHEED ABOU-ALSAMH é jornalista, colaborador do ''Al-Ahram Weekly" (Egito) e do site Tehran Bureau (EUA), foi colunista e editor do ''Arab News" (Arábia Saudita) e do "The National" (Emirados Árabes). 

(O Globo de hoje) 

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